Verdades e mentiras<br>na morte de Soares

Margarida Botelho

A po­sição do PCP sobre o fa­le­ci­mento de Mário So­ares não podia ser mais ri­go­rosa e co­e­rente. As con­do­lên­cias en­vi­adas pelo Par­tido ao PS e à fa­mília foram jus­ti­fi­cadas e claras e não podem ser usadas como ele­mento para a re­es­crita da his­tória.

A cam­panha que se de­sen­volveu a pro­pó­sito e a pre­texto da morte de Mário So­ares é uma ope­ração que pre­tende fixar uma de­ter­mi­nada versão da his­tória, mas so­bre­tudo in­tervir sobre a si­tu­ação ac­tual. Tenta re­es­crever factos da his­tória re­cente, como o pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário ini­ciado a 25 Abril, a des­co­lo­ni­zação – atri­buindo a So­ares uma co­e­rência que efec­ti­va­mente não teve – ou a adesão de Por­tugal à então CEE, com con­sequên­cias pro­fun­da­mente ne­ga­tivas.

A cam­panha, bem or­ques­trada, quer de­finir os bons e os maus, os ven­ce­dores e os per­de­dores e ar­rumar o PCP do lado er­rado da his­tória. Ou al­guém acha que é por acaso que a es­ma­ga­dora mai­oria dos que foram cha­mados a co­mentar o fa­le­ci­mento se cen­trou na pro­pa­ganda da in­ven­tada «di­ta­dura co­mu­nista» que o PCP su­pos­ta­mente queria impor ao povo por­tu­guês a se­guir ao 25 de Abril?

É ver­dade que Mário So­ares com­pro­meteu o de­sen­vol­vi­mento do rumo pro­gres­sista da Re­vo­lução de Abril, que teve as mais ele­vadas res­pon­sa­bi­li­dades na li­qui­dação das con­quistas de Abril, da Re­forma Agrária às na­ci­o­na­li­za­ções, pas­sando pelo ataque aos di­reitos dos tra­ba­lha­dores, que pro­moveu a des­truição da pro­dução na­ci­onal e a re­cons­ti­tuição dos grupos mo­no­po­listas que im­põem a ex­plo­ração e o em­po­bre­ci­mento ao nosso País. É ver­dade que a adesão de Por­tugal à UE foi uma opção po­lí­tica, em que So­ares teve pe­sadas res­pon­sa­bi­li­dades, que não teve nada que ver com os in­te­resses do povo e do País.

É sobre essas ver­dades que esta cam­panha pre­tende lançar uma névoa de mis­ti­fi­cação. É que se há uns anos podia haver dú­vidas sobre os re­sul­tados da adesão de Por­tugal à União Eu­ro­peia, da lei dos con­tratos a prazo e da pre­ca­ri­e­dade, das pri­va­ti­za­ções, ou da in­ter­rupção do ca­minho li­ber­tador de Abril, hoje a vida en­car­regou-se de as cla­ri­ficar. Quanto mais cris­ta­linas são as ver­dades, mais po­de­rosas têm de ser as cam­pa­nhas para as ocultar. E estes dias mos­traram isso mesmo.




Mais artigos de: Opinião

Derrotar Trump

A aproximação da tomada de posse do novo presidente dos EUA não deve fazer perder de vista as tendências de fundo da situação internacional e nos principais centros do imperialismo, com destaque para aquela que ainda é indiscutivelmente a sua maior potência – os...

Será pedir demais?...

O jornal «Negócios» informava na passada terça-feira que «a eventual nacionalização do Novo Banco, o “banco de transição” nascido dos despojos do BES, enfrenta dois obstáculos em Bruxelas, para as quais Mário Centeno terá de...

O que a história a prova

Não há jornal que não tenha a secção dos altos e baixos, do sol e sombra, dos mais e dos menos, do sobe e desce, num exercício de apreciação da acções, atitudes ou iniciativas desta ou daquela personalidade ou organização. Esta...

Os civis

«Quinze cidadãos, escolhidos de forma a espelharem tanto quanto possível a diversidade da sociedade portuguesa», estiveram no último fim-de-semana na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa a «debater propostas para melhorar a...

Descentralização ou desresponsabilização

O de­bate sobre des­cen­tra­li­zação, a pro­pó­sito da trans­fe­rência de com­pe­tên­cias para as au­tar­quias lo­cais, pro­mete pre­en­cher aten­ções. A de­fesa da au­to­nomia do poder local e o re­forço da com­po­nente par­ti­ci­pada na vida do Es­tado exige uma po­lí­tica ba­seada na des­cen­tra­li­zação. A exis­tência de au­tar­quias e a sua con­sa­gração cons­ti­tu­ci­onal re­flecte uma dupla di­mensão de um Es­tado des­cen­tra­li­zado e de au­to­nomia do Poder Local.